quinta-feira, 24 de junho de 2010

O 20º Cine Ceará começa hoje

O 20º Cine Ceará começa hoje, no São Luiz. O filme de abertura, "Do Amor e Outros Demônios" adapta o romance de Gabriel Garcia Márquez com incomum beleza plástica


Em 1949, repórter do jornal "El Universal", de Cartagena, Gabriel Garcia Márquez, então com 21 anos, cobria a derrubada do histórico Convento de Santa Clara e a remoção das criptas funerárias, quando teve a atenção voltada para os restos mortais de uma menina. Para espanto de todos, seus cabelos vermelhos tinha continuado em crescimento e já se estendiam por 22 metros.

Contaram-lhe que se tratava de Sierva Maria de Todos os Santos, de 13 anos, e que fora alvo de cultos da população local no século XVIII. Márquez associou a garota ao relato de um conto popular narrado há algum tempo por sua avó, sobre uma menina cujo cabelo vermelho "se arrastava como a cauda de um vestido de noiva", e que, mordida por um cão raivoso, fora enclausurada no convento. Ali morrera, passando a ser venerada pela comunidade altamente religiosa.

Somente 45 anos depois, em 1994, Márquez publicaria sua versão da história de Sierva Maria num romance intitulado "Do Amor e Outros Demônios" ( Editora Record). Um belo enredo de amor desenvolvido numa reunião de folclore, mito e história.

Rodada em Bolívar, distrito de Cartagena, "Do Amor e Outros Demônios" tem justamente por mérito um tipo de narrativa que costuma ser rejeitada pelo público: a lentidão. Mas essa lentidão é a forma encontrada pela cineasta para aproximar os seus personagens aos olhos e percepção do público.

A sensação de quem está do lado de cá da tela é a de estar com a possibilidade de adentrar e descobrir os pensamentos e sentimentos dos personagens, especialmente de Sierva Maria.

É como Hilda quisesse segurar o tempo, torná-lo um personagem. Nada a estranhar, portanto, que a cineasta seja admiradora do vietnamita Anh Hung Tran, do chinês Wong Kar Wai e do russo Andrei Tarkovsky. Os seus mestres são admiráveis criadores de um cinema ligado a filosofia.

Hilda recria a Colômbia do século XVII com toda a negritude colonialista e religiosa de um catolicismo oportunista e inquisidor em contradição com a claridade do pensamento filosófico iluminista que se desenvolvia na Europa desde o século anterior. Daí seu filme ser envolto em um inquietante claro-escuro, o qual se destaca principalmente nos rostos de seus personagens centrais.

No entanto, não há contradição entre eles. A família e igreja, por exemplo, formam um só instrumento. O pai de Sierva, dominado pela crendice, envia a filha para um convento querendo salvá-la de uma suposta raiva canina. A igreja, por sua vez, tem interesse na menina por ser uma oportunidade para tratar o caso como uma "possessão demoníaca". Para a Igreja da época, o diabo, coitado, estava lá fora e em tudo. Corpo e alma em disputa com as fogueiras consumindo a ambos.

Neste aspecto, o filme promove essa visão da desesperada ação da igreja para manter o seu poder e controle através do medo. As famílias, por sua vez, envoltas nas crendices religiosas.

Contrapondo-se a essa obscuridade, o padre Cayetano Delaura e suas leituras filosóficas, à frente com o pensamento de Leibniz na tentativa de elucidação do mal. Também nada a estranhar que ele seja o enviado, pelo bispo protetor, para exorcizar um demônio em Sierva Maria.

Delaura não encontra nem tipo de mal na menina: nem os demônios apontado pelo bispo e nem três buscados pelo filósofo alemão - o metafísico, físico e o moral. No entanto, sua fé sofre um verdadeiro exorcismo ao ser, gradativamente, conquistado pelos sentimentos de amor pela pré-adolescente. A sexualidade emerge.

Esse elixir do amor, do desejo e do carinho, no entanto, torna-se um tormento para ambos. Sierva Maria o destila na solidão, na ponta dos dedos que percorre, amorosamente, os ombros do religioso em crise - a qual não se exorciza sequer com a auto punição. Sobram dor e lágrimas.

Durante todo o filme, Hilda capta com ímpar sensibilidade e através de imagens plasticamente belíssimas, as dores de angústia e solidão de Sierva Maria, e, posteriormente, a dor de um amor impossível angustiada pelo padre. "Do Amor e Outros Demônios" é um belo filme que prima, principalmente, pelo respeita ao texto de Márquez.

PEDRO MARTINS FREIRE
CRÍTICO DE CINEMA

Fonte: Diário do Nordeste

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